“O que permanece na obra de Freud são basicamente duas coisas: A descoberta do inconsciente e a possibilidade de ter acesso a ele”, diz Renato Mezan.
Veículo: O Globo
Seção: Zona Sul
Data: 29/04/2006
Estado: RJ
Jornalista : Marcia Cezimbra
Comentários: Psicóloga Edy Maria Alves de Oliveira
Nestes 150 anos de Freud, o que permanece em sua obra e o que o tempo poderia descartar? Para o psicanalista Renato Mezan, uma das maiores autoridades em Freud do Brasil e autor do clássico “Freud, o pensador da cultura”, estas questões dariam um belo curso de seis meses de duração. Mas Mezan concordou em resumi-las nesta entrevista e garante que as descobertas de Freud são um patrimônio da Humanidade, sem o qual não se pode nem pensar.
O que permanece vivo e atual na obra de Freud?
RENATO MEZAN: O que permanece na obra de Freud são basicamente duas coisas. A descoberta do inconsciente e a possibilidade de ter acesso a ele. O inconsciente era apenas pressentido. Desde a Bíblia, desde os gregos, a Humanidade sabia que havia coisas sobre as quais nunca se soube nada. A novidade maior é ter uma forma de acesso e de intervenção nesse inconsciente. Portanto, o método analítico permanece e continuará para sempre a exercer essa função individual e única. Pois é uma forma geral de entrar em contato com o inconsciente, mas colorida pelas individualidades de cada um.
E os outros pilares da teoria freudiana?
MEZAN: Outras descobertas de Freud, como o complexo de Édipo, a sexualidade infantil e a importância da sexualidade na vida das pessoas também ficarão para sempre. Como disse certa vez o filósofo Merleau-Ponty, que a substância de Aristóteles, o cógito ou o pensamento de Descartes — e, por minha conta, a mais valia de Marx, o ressentimento de Nietzsche — são noções ou conceitos sem os quais não se pensa mais. O que é essencial em Freud, o cerne, o núcleo, é o Édipo, a sexualidade infantil, as defesas, as pulsões, a importância da sexualidade na vida das pessoas. São noções desses mesmos graus. Não dá mais para pensar sem isso. Além dessas noções, há centenas de formulações e hipóteses que ele escreveu em cinco mil páginas em 40 anos. Na minha opinião, grande parte conserva sua validade.
Mas a psicanálise mudou…
MEZAN: É claro que não se faz mais psicanálise hoje como Freud fazia. A psicanálise se ampliou em extensão e profundidade. Em extensão, porque agora pode atender psicóticos e crianças. Hoje psicanalizam-se casais, adolescentes, grupos, instituições. Há analistas que trabalham em hospitais com médicos, com doentes traumatizados por cirurgias. Há muitos raios de ação com derivações para além dos consultórios.
E em profundidade?
MEZAN: Em profundidade, o método psicanalítico atingiu camadas mais ancestrais e arcaicas da mente, com as descobertas de Melanie Klein, de que a estruturação psíquica se dá no primeiro ano de vida. Essas descobertas deram um grande avanço às estruturas do Freud, tornando-as mais complexas, mais ampliadas.
Freud não teve tempo de formular isso, não é?
MEZAN: Freud não teve tempo e nem poderia dar conta de problemas do mundo atual, como a anorexia ou a drogadição. São fenômenos de hoje, do século XXI. As doenças psíquicas também não são exatamente iguais à época de Freud. Há elementos que não existiam antes, produzindo efeitos que Freud sequer imaginaria. Eu diria que, como um arquiteto, Freud lançou as bases, as paredes e as janelas de um edifício e outros psicanalistas construíram novos andares, deram um acabamento.
E para onde vai essa arquitetura?
MEZAN: Para onde vai a psicanálise? Minha impressão é que vai continuar se expandindo em condições diversas, mas vai essencialmente continuar ouvindo as pessoas falarem, para que descubram, nas suas entrelinhas, a sua verdade, o seu íntimo.
E os desafios do século XXI?
MEZAN: Há alguns desafios, entre eles as novas configurações patológicas, como a depressão associada às drogas. Não são novas patologias, mas são mais freqüentes, mais imperativas, mais urgentes. A questão da droga nessa extensão não existia há 150 anos. Há ainda as novas formas de relacionamento humano. A sociedade foi impondo mudanças nos papéis de homem, nos papéis de mulher. São fatos e questões novas. E a psicanálise foi interpelada para participar dessas mudanças.
O que está mudando?
MEZAN: As mudanças vão surgindo cada vez mais e as condições de exercício da psicanálise vão se alterando. Um exemplo é a freqüência das sessões, que no tempo de Freud chegou a ser de seis vezes por semana, até aos sábados. Eu também fiz análise muitas vezes por semana, mas agora temos atendimentos até de uma vez por semana. Isso se deve às condições socioeconômicas atuais.
Isso interfere no tratamento?
MEZAN: Não. Uma das descobertas de Freud é que, para o inconsciente, não existe tempo. As vivências da primeira infância são tão atuais como as da semana passada. Por isso, você pode fazer um trabalho tão bom uma vez por semana quanto cinco vezes por semana. É claro que cinco vezes por semana pode ser mais intenso, mas isso também é relativo, porque você pode fazer um trabalho intenso com um paciente de uma sessão semanal, enquanto que com o que vai cinco vezes não acontece nada. Depende do paciente.
E o analista?
MEZAN: A figura do analista profissional liberal, que trabalha em seu consultório, também tende a se modificar. O trabalho terapêutico vem se alterando, há convênios que pagam a terapia, reembolsam e o tratamento já está começando a entrar nos planos de saúde. Na Europa, por exemplo, os analistas hoje costumam trabalhar em instituições públicas e também em consultórios particulares. Há também formas de inserção institucional.
E as novas técnicas psicanalíticas como as abordagens corporais do inconsciente?
MEZAN: Ao longo destes 150 anos, surgiram outras técnicas de abordagem corporal, a do grito primal, junguiana. Todas elas surgiram dessa invenção fantástica que é o método analítico. Elas tentam apressar o tratamento, o que é uma preocupação legítima. A psicanálise não é a única forma de atendimento. Tem um montão de coisas. Tem outras disciplinas como a psicologia, a psiquiatria, mas a psicanálise sempre dialogou com elas. Algumas vezes elas se uniram, como a psiquiatria americana que, em um dado período do século passado, antes dos remédios, era exercida por psicanalistas, os chamados shrinkers, encolhedores de cérebros, na gíria psiquiátrica. São aqueles tipos que aparecem muito nos filmes de Woody Allen.
Mas ela pode se unir a outras técnicas e avançar?
MEZAN: Houve avanços notáveis na psiquiatria e na bioquímica, que fazem uma interface de contato com a psicanálise. O paciente da psicanálise pode ser atendido também por um psiquiatra, por um médico. Não é raro encontrar essa consonância. Mas há uma fronteira nítida. A psicanálise focaliza a representação verbal. Só o que é passado pelo crivo da linguagem. Outras abordagens indiretas, que não passam pela representação verbal, não são psicanálise. A psicanálise trabalha com a representação mental. Busca além e aquém dessa representação verbal, mas sempre diante de um registro da linguagem ou construindo pela linguagem a representação que falta. O fato de que a vida psíquica tenha uma base orgânica não significa que a psicanálise tenha que dar conta disso também. Seria muito ingênuo achar que a psicanálise poderia dar conta de tudo. Já não chega tudo o que ela dá conta?
O que a teoria freudiana deve ainda explicar para a psicanalista Marcia Neder Bacha, professora da UFMS e da PUC-SP, a psicanálise hoje não se volta mais para as questões edípicas justamente porque os Édipos estão dando lugar aos Narcisos:
— Narciso, esta perfeição que papai e mamãe projetam no seu bebê, tornando-o um soberano imperador, está levando a melhor. Mas não concordo que a psicanálise tenha se voltado para a capacidade de amar. O ser humano não é essa pureza que só ama, conforme Freud nos mostrou, e o mundo à nossa volta o confirma a cada minuto. Para os psicanalistas, pouco importa se a psicanálise vai dar conta de todo esse narcisismo:
— Só um tolo acreditaria que Freud explica tudo. Ele nunca pensou assim. Mas o homem, sujeito psíquico, reserva em sua cultura um lugar para a psicanálise. É apenas isto, um espaço de subjetivação e historicização, que a psicanálise pretende ser — observa José Outeiral.
Para Outeiral, a psicanálise hoje ultrapassou a questão do tratamento psicanalítico e é “aplicada” em hospitais e escolas, contribuindo na compreensão da violência. Além de invadir a vida cotidiana, a psicanálise dialoga com diferentes áreas de pesquisas como a neurociência e com outras formas de abordagens terapêuticas. Benílton Bezerra Jr. acha curioso que, quanto mais as pesquisas com neuroimagens descobrem novidades sobre o funcionamento do cérebro, mais se percebe a acuidade das observações freudianas sobre aspectos da vida psíquica, como a amnésia infantil, a memória não-verbal, a vinculação dos sonhos a desejos.
O que há de mais interessante, na opinião de Benílton, é o diálogo entre psicanalistas e neurobiologistas, budismo, psicologia do desenvolvimento e a teoria ecológica do self: — Estas disciplinas colocam interrogações interessantíssimas à psicanálise. Um exemplo são as investigações sobre o universo perceptual e de ação dos recém-nascidos, que têm revolucionado nosso entendimento do processo de constituição da subjetividade.
Apesar de resistências históricas a novidades que ultrapassem as fronteiras de Freud, os psicanalistas hoje parecem abertos ao diálogo.
— No mundo que busca resultados rápidos, mesmo superficiais, muitas terapias têm seu lugar. A sociedade de consumo acredita que sempre será possível comprar uma pílula da felicidade. Como metilfenidato ou Ritalina para crianças e adolescentes que sofrem de falta de atenção sim, mas não em seus cérebros. É déficit de atenção e afeto de seus pais e do mundo adulto — afirma Outeiral.
Esta receptividade é uma boa notícia para psicólogos como Edy Maria Oliveira, presidente do Instituto Brasileiro de Hipnoterapia. Com base nas pesquisas de neurocientistas como Antonio Damasio e Joseph Ledoux, ela adota técnicas de hipnose para relaxar o consciente e acessar mais rapidamente as emoções:
— Sem esta técnica o paciente levará anos para entrar em contato com registros inconscientes. É bom saber que psicanalistas querem dialogar com as experiências do século XXI.
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